Em busca da recuperação: o plano decisivo para salvar empregos e negócios
A
definição dos créditos sujeitos à recuperação judicial e a solução dos
conflitos sobre quem tomará as decisões que impactam o patrimônio da empresa
devedora – temas já tratados nesta série – são apenas duas etapas no difícil
caminho para a superação da crise e a plena retomada das atividades econômicas,
do qual a aprovação do plano de reestruturação constitui o momento decisivo.
De
acordo com o artigo 53 da Lei 11.101/2005, o plano de recuperação deve ser
apresentado no prazo improrrogável de 60 dias, contados da publicação da
decisão que deferir o processamento da recuperação, sob pena de decretação da
falência. O mesmo artigo prevê que o plano deve discriminar os meios de
recuperação que serão empregados, demonstrar a viabilidade econômica do projeto
e anexar laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens do devedor.
Entre
os instrumentos para a recuperação, o artigo 50 oferece uma série de opções,
tais como a concessão de prazos e condições especiais de pagamento, a alteração
do controle societário e o aumento do capital social. Também podem ser
utilizadas medidas como redução salarial, compensação de horários e redução de
jornada, mediante acordo ou convenção coletiva; venda parcial de bens e emissão
de valores mobiliários.
No
entanto, entre a apresentação do plano e a sua aprovação pela assembleia geral
de credores, podem surgir divergências cuja solução caberá ao Judiciário, e
muitas chegarão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para a palavra final. É
exatamente a formação do plano de reestruturação empresarial o tema principal
da última matéria da série Em busca da recuperação.
A
assembleia geral
A
aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação apresentado pela
empresa devedora é responsabilidade da assembleia geral de credores. Também são
atribuições da assembleia, entre outras elencadas no artigo 35 da Lei
11.101/2005, a deliberação sobre pedido de desistência do devedor e a
constituição de comitê de credores.
No
REsp 1.314.209, a Terceira Turma entendeu que a assembleia geral é soberana em
suas decisões quanto ao conteúdo do plano; contudo, as suas deliberações estão
submetidas ao controle judicial em relação aos requisitos legais de validade
dos atos jurídicos em geral.
Segundo
a ministra Nancy Andrighi, a apresentação, pelo devedor, do plano de
recuperação, bem como a sua aprovação pelos credores, configuram atos de
manifestação de vontade. Para a ministra, ao regular a recuperação judicial, a
legislação entrega à coletividade diretamente interessada na satisfação do
crédito a faculdade de opinar e de autorizar os procedimentos de reerguimento
econômico da sociedade que está em dificuldades, chegando-se a uma solução de
consenso.
Entretanto,
Nancy Andrighi ponderou que a obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação
de vontade não resulta na impossibilidade de que a Justiça promova o controle
quanto à licitude das providências decididas em assembleia.
De
acordo com a ministra, qualquer negócio jurídico – mesmo no âmbito privado –
representa uma manifestação soberana de vontade, mas que somente é válida se,
nos termos do artigo 104 do Código Civil, for originada de agente capaz,
mediante a utilização de forma prescrita ou não proibida pela lei, e se
contiver objeto lícito, possível, determinado ou determinável.
"Na
ausência desses elementos (dos quais decorrem, com adição de outros, as causas
de nulidade previstas nos artigos 166 e seguintes do CC/2002, bem como de
anulabilidade dos artigos 171 e seguintes do mesmo diploma legal), o negócio
jurídico é inválido. A decretação de invalidade de um negócio jurídico em geral
não implica interferência, pelo Estado, na livre manifestação de vontade das
partes. Implica, em vez disso, controle estatal justamente sobre a liberdade
dessa manifestação, ou sobre a licitude de seu conteúdo", explicou a
ministra.
Atualização
da dívida
No
julgamento do REsp 1.630.932, a Terceira Turma entendeu ser válida cláusula do
plano de recuperação que determinou a atualização do saldo devedor por meio da
Taxa Referencial (TR), como índice de correção monetária, e da taxa de juros de
1% ao ano.
Além
de prever os juros e a atualização monetária, o plano fixou em 14 anos o prazo
de parcelamento dos créditos quirografários (que não possuem direito de
preferência).
Entretanto,
o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concluiu que os índices de
atualização indicados no plano eram muito prejudiciais à massa credora, já que
não se referiam à recomposição da perda advinda da inflação. Para o tribunal, a
previsão de juros em 1% ao ano contrariaria o artigo 406 do Código Civil, que
deve ser observado nas obrigações parceladas eventualmente descumpridas.
Assim,
o TJSP substituiu a TR pela correção monetária adotada pelo próprio tribunal e
fixou os juros em 1% ao mês – e não ao ano –, como previsto no artigo 161,
parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional.
Relator
do recurso especial, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino lembrou que a
jurisprudência do STJ limita o controle judicial sobre o plano de recuperação
aos aspectos da legalidade do procedimento e do conteúdo, sendo vedado ao juiz
adentrar no conteúdo econômico das cláusulas.
O
ministro também indicou que não há norma geral que estabeleça um limite mínimo
para a taxa de juros – quer moratórios, quer remuneratórios –, bem como não há
regra que preveja a periodicidade anual. Dispositivos legais como o artigo 406
e 591 do Código Civil possuem, para o relator, caráter meramente supletivo, ou
estabelecem um teto de aplicação; por isso, não seriam aplicáveis ao caso dos
autos, no qual houve expressa manifestação de vontade no plano.
Além
disso, Sanseverino ressaltou que o STJ prevê a possibilidade de utilização da
TR em contratos. O relator também explicou que o plano de recuperação pressupõe
a disponibilidade de direitos por parte dos credores e, assim, nada impediria
que eles dispusessem também sobre a atualização monetária de seus créditos,
assumindo por si o risco de intercorrências inflacionárias, tudo em prol da
recuperação da empresa.
"Nessa
ordem de ideias, não seria inválida a cláusula do plano de recuperação que
suprimisse a correção monetária sobre os créditos habilitados, ou que adotasse
um índice que não reflita o fenômeno inflacionário (como a TR, no caso dos
autos), pois tal disposição de direitos se insere no âmbito da autonomia que a
assembleia de credores possui para dispor de direitos em prol da recuperação da
empresa em crise financeira", concluiu o ministro.
Subclasses
A
Terceira Turma também definiu, no julgamento do REsp 1.634.844, que é possível
a criação de subclasses entre os credores na recuperação, desde que seja
estabelecido um critério objetivo, justificado no plano.
O
recurso analisado pelo colegiado teve origem em agravo de instrumento que
questionou plano de reestruturação no qual foram criadas subclasses entre os
credores quirografários. A proposta era que fossem priorizados, dentro da
classe quirografária, os credores fornecedores de serviços essenciais à
empresa.
A
divisão estabelecida no plano foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo, que considerou não haver ilegalidade no tratamento diferenciado entre
credores da mesma classe, tampouco na criação das subclasses, desde que isso
fosse aprovado pelos credores de todas as classes.
Ao
STJ, o Banco Paulista alegou não ser possível dar tratamento diferenciado aos
credores do mesmo grupo, estabelecendo um tipo de privilégio entre eles.
O
ministro Villas Bôas Cueva explicou que, na recuperação, deve haver tratamento
igualitário entre os credores, mas pode ocorrer o estabelecimento de distinções
entre os integrantes de uma mesma classe. Segundo o ministro, essa
diferenciação se justifica porque as classes de credores – especialmente a de
credores quirografários – reúne credores com interesses bastante homogêneos,
como credores financeiros, fornecedores, credores com privilégio geral, entre
outros.
Nesse
sentido, Villas Bôas Cueva destacou que, escolhido o critério distintivo, todos
os credores que possuam interesses homogêneos serão agrupados sob essa
subclasse, devendo ficar expresso o motivo pelo qual o tratamento diferenciado
desse grupo se justifica e favorece a recuperação judicial, possibilitando o
controle acerca da legalidade do parâmetro estabelecido.
"Essa
providência busca garantir a lisura na votação do plano, afastando a
possibilidade de que a recuperanda direcione a votação com a estipulação de
privilégios em favor de credores suficientes para a aprovação do plano,
dissociados da finalidade da recuperação judicial. Vale lembrar, no ponto, que
a recuperação judicial busca a negociação coletiva e não individual, reunindo
os credores para tentar a superação das dificuldades econômicas da empresa",
concluiu o ministro ao manter os parâmetros do plano de recuperação.
Vale
para todos
Em
2016, a Terceira Turma decidiu que o plano de recuperação aprovado pela
assembleia geral de credores, no qual se estabeleceu a supressão das garantias
reais e fidejussórias (como o aval e a fiança), tem efeitos para todos os
credores, e não apenas para os que votaram favoravelmente à sua aprovação.
No
âmbito da recuperação de três empresas, o juiz homologou as propostas do plano
com a ressalva de que a estipulação de cláusula que previa a supressão das
garantias fidejussórias e reais somente poderia atingir os credores presentes
que votaram pela aprovação.
A
homologação foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Para o
tribunal, na alienação de bem objeto de garantia real, a liberação da garantia
ou sua substituição só podem ser admitidas mediante concordância expressa do
credor, nos termos do artigo 50, parágrafo 1º, da Lei 11.101/2005.
O
relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, explicou inicialmente que
o artigo 49 da Lei 11.101/2005 prevê que as obrigações anteriores à recuperação
devem observar as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, mas
expressamente ressalva a possibilidade de o plano dispor sobre as garantias de
modo diverso.
Para
o ministro Bellizze, é absolutamente descabido restringir a supressão das
garantias, tal como previsto no plano aprovado pela assembleia, somente aos
credores que tenham votado de forma favorável, o que conferiria tratamento
diferenciado aos demais credores da mesma classe, em manifesta contrariedade à
deliberação majoritária.
Mesmo
que determinado credor não compareça à assembleia ou, estando presente, se
abstenha de votar ou se posicione contra, total ou parcialmente, à aprovação do
plano, seus termos o subordinam necessariamente, segundo o ministro.
"Compreensão
diversa, por óbvio, teria o condão de inviabilizar a consecução do plano, o que
refoge dos propósitos do instituto da recuperação judicial", concluiu o
ministro para manter a supressão de garantias aprovada no plano (REsp
1.532.943).
Execuções
individuais
A
Quarta Turma, ao julgar o REsp 1.272.697, fixou entendimento no sentido de que,
após a aprovação do plano de recuperação pela assembleia e posterior
homologação pelo juiz, devem ser extintas – e não apenas suspensas – as
execuções individuais até então propostas nas quais se busca a cobrança de
créditos inseridos no plano.
No
caso analisado pelo colegiado, após a aprovação do plano, a Companhia
Imobiliária de Brasília (Terracap) teve suspensa por 180 dias uma execução
promovida contra a empresa de engenharia em recuperação. O juiz, contudo, negou
a extinção da ação individual.
A
decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios (TJDFT). De acordo com a corte, a efetivação da recuperação é
viabilizada mediante a aceitação do plano de recuperação previamente submetido
à aprovação dos credores e ratificado pelo juízo, o que implica a novação da
responsabilidade das obrigações da devedora.
Entretanto,
para o TJDFT, a recuperação não se sobrepõe às execuções individuais promovidas
em desfavor da empresa, tampouco determina sua extinção. No entendimento do
tribunal do DF, o deferimento da recuperação implica, simplesmente, a suspensão
das execuções pelo prazo definido na legislação.
Porém,
segundo o ministro Luis Felipe Salomão, as instâncias ordinárias confundiram
dois conceitos distintos no processo de recuperação: o deferimento do processamento
do pedido e a concessão da recuperação judicial, após a aprovação do plano.
Uma
vez deferido o processamento da recuperação, explicou o relator, o magistrado
determina a suspensão de todas as ações e execuções, nos termos dos artigos 6º
e 52 da Lei 11.101/2005. A medida é necessária para que o devedor reorganize
suas contas e estabeleça estratégias para resolução de suas dívidas; porém,
após o prazo de 180 dias de suspensão, a legislação prevê que seja restaurado o
direito do credor de continuar suas ações e execuções, independentemente de
pronunciamento judicial.
Diferentemente
da primeira fase, afirmou Salomão, a aprovação do plano gera a novação dos
créditos e a decisão homologatória constitui, ela própria, um novo título
executivo judicial. Por isso, com a constituição do novo título, caso haja
inadimplemento da obrigação assumida por ocasião da aprovação do plano, não há
mais possibilidade de as execuções antes suspensas retomarem o curso normal.
"Com
efeito, não há possibilidade de a execução individual de crédito constante do
plano de recuperação – antes suspensa – prosseguir no juízo comum, mesmo que
haja inadimplemento posterior, porquanto, nessa hipótese, se executa a
obrigação específica constante do novo título judicial ou a falência é
decretada, caso em que o credor, igualmente, deverá habilitar seu crédito no
juízo universal", apontou o ministro.
Viabilidade
econômica
No
REsp 1.359.311, a Quarta Turma firmou o entendimento de que, cumpridas as
exigências legais, o juiz deve conceder a recuperação judicial do devedor cujo
plano tenha sido aprovado em assembleia, não sendo possível adentrar no aspecto
da viabilidade econômica da empresa, tendo em vista que essa questão é de
exclusiva apreciação da assembleia.
Depois
da aprovação do plano de reestruturação de um abatedouro, um dos credores não
se conformou com a concessão da recuperação e, em agravo de instrumento, alegou
que o plano era inviável, já que não propusera a venda de ativos e estabelecera
um prazo excessivo de pagamento das dívidas.
A
homologação do plano foi mantida pelo TJSP, que considerou não ser possível
discutir uma proposta de recuperação que os credores, reunidos em assembleia,
consideraram viável.
Relator
do recurso do credor, o ministro Luis Felipe Salomão explicou que,
diferentemente da falência – em que o objetivo principal é a satisfação dos
interesses dos credores –, na recuperação há a tentativa de promoção do
equilíbrio entre os interesses dos credores e a manutenção da empresa. Por essa
razão, comentou o ministro, a recuperação possui um custo social e de mercado,
que é a submissão dos credores (trabalhadores, inclusive) a formas não
propriamente mercadológicas de recuperação do crédito.
Nesse
cenário – enfatizou o relator –, da mesma forma que a intervenção judicial no
aspecto mercadológico de uma empresa em crise visa tutelar interesses públicos
relacionados à sua função social e à manutenção da fonte produtiva e dos postos
de trabalho, também é verdade que a recuperação judicial, com a aprovação do
plano, cria uma nova relação negocial estabelecida entre o devedor e os
credores reunidos em assembleia.
"De
fato, internamente às tratativas referentes à aprovação do plano de
recuperação, muito embora de forma mitigada, aplica-se o princípio da liberdade
contratual, decorrente da autonomia da vontade. São apenas episódicos – e
pontuais, com motivos bem delineados – os aspectos previstos em lei em que é
dado ao Estado intervir na avença levada a efeito entre devedor e
credores", apontou Salomão.
Ao
manter a decisão do TJSP, o ministro considerou que o magistrado realmente não
seria a pessoa mais indicada para aferir a viabilidade econômica de planos de
recuperação, "sobretudo daqueles que já passaram pelo crivo positivo dos
credores em assembleia, haja vista que as projeções de sucesso da empreitada e
os diversos graus de tolerância obrigacional recíproca estabelecida entre
credores e devedor não são questões propriamente jurídicas, devendo, pois,
acomodar-se na seara negocial da recuperação judicial".
Após
a aprovação
Em
2015, a Terceira Turma decidiu que, ainda que o plano de recuperação já tenha
sido homologado, é possível a retificação do quadro geral de credores com base
em julgamento de impugnação.
No
momento do deferimento da recuperação de uma empresa de hotéis, o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) teve seu crédito
declarado em mais de R$ 34 milhões, mas apresentou impugnação ao quadro geral
de credores por entender que o valor representava somente 10% do real valor da
dívida.
Após
a aprovação do plano pela assembleia, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
(TJRJ) estabeleceu ao BNDES o crédito no valor de aproximadamente R$ 382
milhões. Por isso, o banco requereu a retificação do quadro geral de credores,
pedido acolhido pelo juiz da vara empresarial. Nesse ponto, a decisão foi
mantida pelo TJRJ.
Por
meio de recurso especial, um dos credores alegou que seria inadmissível a
modificação do plano aprovado pela assembleia e homologado pelo juiz com o
objetivo de alterar a forma de rateio entre os credores. Segundo o recorrente,
a alteração judicial seria processada sem concordância da empresa em
recuperação e dos demais credores, que estariam sofrendo os prejuízos da
modificação.
O
ministro Villas Bôas Cueva destacou que, na hipótese dos autos, a aprovação do
plano ocorreu antes da pacificação dos créditos, e que a existência de plano de
recuperação já aprovado não pode ser um entrave à consolidação do quadro geral
de credores.
"A
retificação do quadro geral de credores após o julgamento da impugnação é
consequência lógica e previsível, própria da fase de verificação e habilitação
dos créditos. É requisito indispensável para a consolidação do quadro geral de
credores, sendo completamente desinfluente para a higidez do plano de
recuperação judicial já aprovado o fato de eventualmente se concretizar após
sua homologação", apontou o ministro.
Segundo
o relator, as questões passíveis de serem objeto de impugnação judicial contra
a relação de credores – previstas no artigo 8º da Lei 11.101/2005 – são
consolidadas só após o julgamento de eventual impugnação, como previsto pelo
artigo 18 da Lei de Recuperação. Desse modo – enfatizou o ministro –, é
admitida a retificação do quadro geral de credores no tocante à ausência,
legitimidade, importância ou classificação de crédito, mesmo depois da
aprovação do plano (REsp 1.371.427).
Fonte: STJ