Nova regra da Receita gera corrida aos escritórios
Entre os maiores problemas está
a tributação de lucros e dividendos recebidos pelos sócios.
Alessandro
Cristo
A regra editada esta semana pela Receita Federal dando novas
diretrizes para as empresas sob o Regime Tributário de Transição (RTT) já causa
alvoroço nos escritórios de advocacia. Desde a última terça-feira (17/9), quando
a Instrução Normativa 1.397 foi publicada, as bancas receberam dezenas de
consultas de clientes preocupados em ter de refazer balanços desde 2008. Alguns
deles já contrataram a discussão judicial contra o Fisco.Entre os
maiores problemas está a tributação de lucros e dividendos recebidos pelos
sócios. Esses valores geralmente são isentos, mas a Receita enquadra como
tributáveis aqueles distribuídos antecipadamente, no curso do ano, quando, ao
fim do exercício, a empresa fecha suas contas e verifica que teve prejuízo ou
lucro inferior ao distribuído. Pela nova norma, não só essas importâncias serão
consideradas como lucros em excesso e tributadas, mas também os valores pagos
aos sócios que forem maiores que o resultado efetivo da empresa apurado segundo
as normas contábeis anteriores a 2007, quando novos métodos contábeis entraram
em vigor no Brasil.O divisor de águas foi a adequação da contabilidade
brasileira às regras internacionais (International Financial Reporting
Standards, ou IFRS), que aconteceu em 2007, por meio da Lei 11.638. Como essas
alterações interfeririam na base de cálculo de tributos, o Fisco brasileiro deu
um jeito de afastar os efeitos das novas regras sobre sua arrecadação. Esse
jeito foi a Lei 11.941, que, em 2009, instituiu o Regime Tributário de Transição
(RTT), que determinou a forma de cálculo das bases do Imposto de Renda de Pessoa
Jurídica e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido para empresas sujeitas
ao regime de apuração do Lucro Real — usado na maioria dos casos por sociedades
anônimas e sociedades limitadas de grande porte. O regime, que era para ser
provisório, está até hoje à espera de uma lei que institua um sistema
definitivo.Mas o Fisco decidiu não esperar uma lei e baixou sua própria
regra. A IN 1.397 determinou que os novos padrões contábeis da Lei 11.638 não
valem como regra geral para se calcular o IRPJ, e não apenas para se apurar o
lucro real e a base de cálculo da CSLL das empresas sujeitas ao RTT. Pegando a
todos de surpresa devido a seus efeitos retroativos, a IN explicou que as
empresas no RTT são obrigadas a levantar um balanço nos padrões internacionais e
outro para fins fiscais. A nova obrigação, batizada de Escrituração Contábil
Fiscal, entra em vigor a partir do ano que vem e substitui o Controle Fiscal
Contábil de Transição (FCont). De quebra, o Fisco ainda criou uma nova definição
de lucro diferente da societária e contábil: a de "lucro fiscal". A diferença
entre o lucro contábil e o "lucro fiscal" passa a ser tributável.Pela
nova regra, lucros e dividendos recebidos por cotistas e acionistas só são
isentos até o montante obtido com a aplicação das regras contábeis vigentes até
a edição da Lei 11.638, de 2007, inclusive no caso de pessoas físicas, como
explica a advogada Ana Claudia Utumi, do escritório TozziniFreire Advogados. "Se
o chamado lucro contábil, apurado dentro das novas normas de contabilidade
estabelecidas pela Lei 11.941, for maior que o lucro fiscal, essa diferença,
quando distribuída, será considerada como 'outros rendimentos' e sujeita à
tributação, o que implica IRPJ e CSLL para acionistas e cotistas corporativos.
No caso das pessoas físicas, aplica-se a tabela progressiva, além de 15% ou 25%
— se o beneficiário residir em paraíso fiscal — no caso de não-residentes no
país."Para Paulo Bento, sócio da área tributária do escritório Barbosa,
Müssnich & Aragão, não existe lei que imponha ao investidor pessoa física
que ele ofereça qualquer parte de seus dividendos à tributação, já que essas
verbas são isentas, de acordo com a Lei 9.249/1995. O advogado afirma já ter
recebido pelo menos 10 consultas sobre o assunto desde a última
terça."Se apenas parte do lucro seria isento, caberia às empresas a
obrigação de informar a seus acionistas ou cotistas qual parcela do lucro seria
isenta e qual seria tributável, já que o acionista não tem acesso a essa
informação interna. Acontece que não existe sequer base legal para essa pretensa
diferenciação entre lucro contábil e lucro fiscal que justifique uma segregação
no Informe de Rendimentos", afirma.Para quem paga os dividendos, o
problema seria a falta de retenção do Imposto de Renda na fonte no caso de
pagamento a investidor estrangeiro ou pessoa física. Uma autuação do Fisco, na
melhor das hipóteses, acarretaria na aplicação de multa isolada pelo
descumprimento da obrigação de reter o imposto. No caso de beneficiário
estrangeiro, haveria ainda a necessidade de recolhimento do imposto sobre a base
de cálculo ajustada, o chamado gross up, tendo em vista que para essas situações
a tributação é exclusiva na fonte.No caso dos juros sobre capital
próprio, a regra da Receita define que sua dedução da base de cálculo do IRPJ e
da CSLL só é válida se a apuração foi feita com base no conceito de patrimônio
líquido previsto nas regras contábeis anteriores à lei de 2007, o que também
pode gerar autuações fiscais."Já estamos discutindo com clientes sobre a
possibilidade de entrar com Mandados de Segurança. Por essa interpretação do
Fisco, há empresas que podem ter distribuído ou virem a ser obrigadas a
distribuir, com base em seus estatutos ou contratos sociais, mais lucros do que
a parcela entendida como isenta pela Receita", diz Bento. Segundo ele, muitos já
estão refazendo as contas para avaliar os impactos.O advogado alerta que
as mudanças relativas ao método de equivalência patrimonial (MEP) podem ser
ainda mais impactantes. O MEP obriga as empresas que investem no capital de
outras a registrar, em seu balanço, o investimento com base no valor do
patrimônio líquido da companhia investida. A nova regra da Receita, no entanto,
afirma que o parâmetro para avaliação do MEP é o patrimônio líquido das
sociedades investidas apurado de acordo com os métodos contábeis de 2007 — ou
seja, de antes do RTT. "Na hipótese de alienação de participação societária,
pode haver diferença entre o custo considerado no balanço e o custo reconhecido
pelo Fisco e, assim, do ganho ou perda de capital apurado. Da mesmo forma, como
isso altera o critério de avaliação do investimento, pode trazer reflexo no
valor do ágio ou deságio registrado na aquisição de investimento e,
consequentemente, alteração do valor de sua amortização para fins fiscais",
explica.Fabio Zambitte, do Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça &
Associados, conta ter atendido a seis consultas até agora. Ele resume o
imbróglio criado pela iniciativa fiscal: "Desde o advento do RTT, muitas
empresas, ao interpretar que o regime transitório seria unicamente relacionado à
quantificação do IRPJ e CSLL, entenderam que a distribuição isenta de lucros e
dividendos a sócios e acionistas seria quantificada pelo lucro societário, o
qual, frequentemente, é mais elevado. Com a edição da Instrução Normativa, a
Receita deixa claro entender que a base de cálculo dessas distribuições isentas
é o lucro fiscal — o lucro societário recalculado pela dinâmica contábil
anterior antes das adições, exclusões e compensações do lucro real." Para ele,
distribuições de lucros já feitas estão sob a regra de isenção da Lei 9.249/1995
e, portanto, livres de futuras cobranças.Além da via judicial, as
empresas podem optar por discutir o assunto na própria administração tributária.
Segundo o advogado Vinícius Branco, do Levy & Salomão Advogados, o Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais, órgão paritário que julga contestações de
contribuintes a autuações fiscais, é o local mais indicado para discussões com
tamanha complexidade técnica. "A IN vincula os fiscais, mas não o Carf, que pode
dar uma interpretação correta à regra e limitar os efeitos desejados pelo
Fisco", diz, mas alerta: "A contraindicação à discussão administrativa é que
seria preciso aguardar uma autuação, o que, de pronto, acarreta multa de
75%."Ana Claudia Utumi, do TozziniFreire, conta ter recebido mais de 15
pedidos de esclarecimentos. "Entendemos que há base para discutir tanto no Carf
quanto no Judiciário", afirma. "Grande parte das empresas preferem esperar a
autuação para discutir no Carf."Segundo ela, a possibilidade de se
manter dois balanços, um contábil e outro tributário, já havia sido
expressamente afastada com a publicação da lei que criou o RTT. "Ou seja, a
obrigação que havia na lei e foi revogada volta agora por meio da IN
1.397."No Mattos Filho Advogados, o advogado Flávio Mifano, sócio da
área tributária, já acertou com um cliente a impetração de um Mandado de
Segurança e atendeu a pelo menos cinco consultas. O número pode aumentar, já que
as novas regras atingirão praticamente todas as sociedades anônimas e
"provavelmente todas as de médio e grande porte que são auditadas e estão
obrigadas ao IFRS", avalia.Até esta quinta-feira (19/8), o Bichara,
Barata & Costa Advogados havia recebido ao menos 10 consultas de clientes.
"Pelo menos quatro Mandados de Segurança já foram contratados", conta o sócio
Luiz Gustavo Bichara."A Lei 11.638, quando pretendeu aproximar a
contabilidade brasileira à internacional, deixou bastante claro que, para fins
de apuração de lucros, deveria ser usada exclusivamente a legislação contábil e
societária. O RTT, por sua vez, ao disciplinar a neutralidade tributária dessas
modificações contábeis, não teve por objetivo criar uma nova contabilidade para
fins fiscais, mas somente permitir ajustes no livro contábil, mantendo a
contabilidade societária para o balanço", explica o advogado Pedro Teixeira de
Siqueira Neto, também do escritório.No Demarest Advogados, as consultas
já começaram em fevereiro, quando a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional
publicou parecer usado agora como fundamento pela IN da Receita. O Parecer PGFN
CAT 202/2013 foi dirigido à administração tributária, e não aos contribuintes.
Mas, temendo autuações, ao menos 40 empresas procuraram a banca buscando
esclarecimentos.O sócio Carlos Eduardo Orsolon, que atendeu a consultas
de pelo menos três clientes desde a última terça, repete o que tem dito a todos:
"O Direito Tributário é de 'sobreposição', ou seja, não pode impor conceito que
a legislação de outros ramos já definiu. Se o conceito de lucro foi estabelecido
pela Lei das S.A. [a Lei 6.404/1976], a legislação fiscal não pode alterá-lo,
ainda mais por meio de uma norma infralegal."De acordo com ele, a lei
que criou o RTT é uma prova de que qualquer novo método de cálculo deveria ter
vindo por meio de lei, e não de instrução normativa. "O RTT trouxe parâmetros
para debêntures e subvenções de investimentos, mas nada falou a respeito de
juros sobre capital próprio, lucros ou equivalência patrimonial. Por que houve
uma lei para disciplinar os dois primeiros pontos e uma IN para definir o
resto?", questiona.O Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e
Advogados também recebe consultas desde fevereiro, segundo o sócio Igor Mauler
Santiago. "Já vínhamos sendo consultados sobre a base de cálculo dos dividendos
isentos há algum tempo. Devemos ter respondido a umas cinco consultas", conta.
Segundo o advogado, o escritório não estava recomendando medidas judiciais, mas
a IN mudou esse cenário.Se nos escritórios full service o índice de
consultas é alto, nos especializados em Direito Tributário a demanda também é
forte. O Machado Associados recebeu mais de 20 pedidos de esclarecimento,
segundo o sócio Carlos Augusto Cruz. "Estamos em fase de consultas, para
analisar, desde 2008, os eventuais efeitos da distribuição de lucros com efeitos
tributários e do pagamento de juros sobre o capital próprio. Entretanto, ainda é
muito prematuro falarmos em Mandado de Segurança."Douglas Odorizzi,
sócio da butique Dias de Souza Advogados Associados, afirma ter respondido a
mais de 10 clientes nos últimos três dias. A todos tem dito que as regras sobre
juros sobre capital próprio e dividendos são questionáveis, mas ele também vê
pontos positivos na nova IN. "A norma reafirma qual o tratamento sobre o 'lucro
em excesso'. No passado, mesmo havendo regra fixando o modo de tributação dos
lucros distribuídos em excesso, houve casos em que os pagamentos foram
considerados como 'sem causa' e sofreram tributação do IR à alíquota de 35%, que
compõe sua própria base de cálculo, chegando-se a uma carga real de 53%. Embora
a Instrução Normativa 93, de 1997, proibisse essa incidência, vimos casos
concretos de autuações desse tipo, felizmente derrubadas pelo Carf",
conta.Marcelo Knopfelmacher, da butique Knopfelmacher Advogados, já tem
reunião marcada com um cliente que tem 12 empresas em seu grupo, que podem ser
afetadas pela nova regra. Ele aponta que a possível justificativa do Fisco para
trazer as inovações em uma IN não são cabíveis. "Criar norma tributária por IN
fere o artigo 106 do Código Tributário Nacional. Quando a Receita quer dar uma
interpretação a uma regra, ela publica um Ato Declaratório Intepretativo. Mas
como a IN é uma inovação, cabe Mandado de Segurança contra ela",
afirma.
Fonte: Revista Consultor Jurídico