Desconsideração inversa combate abusos na utilização da pessoa jurídica
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido, em
casos excepcionais, a responsabilização patrimonial da pessoa jurídica
pelas obrigações pessoais de seus sócios ou administradores. Por meio da
interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil (CC), diversos
julgados do tribunal aplicam a desconsideração inversa da personalidade
jurídica – que afasta a autonomia patrimonial da sociedade – para coibir
fraude, abuso de direito e, principalmente, desvio de bens.
Diz o artigo 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público
quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Construída inicialmente a partir da interpretação finalística desse
dispositivo, a desconsideração inversa já tem previsão legal no
ordenamento brasileiro: ao tratar do incidente da desconsideração da
personalidade jurídica, o artigo 133 do novo Código de Processo Civil
determina, em seu parágrafo 2º, que as mesmas disposições sejam
aplicadas à hipótese inversa.
Teoria maior
De acordo com o ministro Villas Bôas Cueva, a lei civil brasileira
adotou a denominada teoria maior da desconsideração para admitir que o
patrimônio particular dos sócios ou administradores seja alcançado para
cobrir obrigações assumidas pela sociedade, quando verificado abuso por
parte deles, traduzido em desvio de finalidade ou confusão patrimonial
(REsp 1.493.071).
A situação inversa, ensina o ministro Cueva, pode ser aplicada
quando, por exemplo, sócios ou administradores esvaziam seu patrimônio
pessoal para ocultá-lo de credores.
Ou, conforme o ministro Marco Aurélio Bellizze, para responsabilizar
a empresa por dívidas próprias dos sócios, quando demonstrada a
utilização abusiva da personalidade jurídica (AREsp 792.920).
Meação
Há ainda outra hipótese. A inversão pode ser requerida para
resguardar meação em dissolução de união estável. “Se o sócio
controlador de sociedade empresária transferir parte de seus bens à
pessoa jurídica controlada com o intuito de fraudar a partilha, a
companheira prejudicada terá legitimidade para requerer a
desconsideração inversa da personalidade jurídica”, afirmou a ministra
Nancy Andrighi em julgamento de recurso especial (REsp 1.236.916).
Segundo a ministra, nesse caso, a desconsideração inversa combate a
prática de transferir bens para a pessoa jurídica controlada pelo
devedor, para evitar a execução de seu patrimônio pessoal.
“A desconsideração inversa tem largo campo de aplicação no direito
de família, em que a intenção de fraudar a meação leva à indevida
utilização da pessoa jurídica”, apontou Andrighi.
Ela mencionou duas situações no campo familiar em que a inversão
pode ser admitida: o cônjuge ou companheiro esvazia seu patrimônio
pessoal e o integra ao da pessoa jurídica para afastá-lo da partilha; ou
o cônjuge ou companheiro, às vésperas do divórcio ou dissolução da
união estável, efetiva sua retirada aparente da sociedade da qual é
sócio, transferindo sua participação para outro membro da empresa ou
para terceiro, também com o objetivo de fraudar a partilha.
Legitimidade
No caso analisado pela Terceira Turma, os ministros discutiram a
legitimidade da companheira, sócia minoritária, para requerer a
desconsideração da personalidade jurídica da empresa, tendo sido
constatada pelas instâncias ordinárias a ocorrência de confusão
patrimonial e abuso de direito por parte do seu companheiro, sócio
majoritário.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que a desconsideração
inversa pretende alcançar bens ou rendimentos do ente familiar que, de
forma indevida, se confundiram com os da sociedade da qual é sócio.
“Nessa medida, a legitimidade para requerer a desconsideração é
atribuída, em regra, ao familiar lesado pela conduta do sócio”, disse.
Em seu entendimento, essa legitimidade decorre da condição de
companheira, sendo irrelevante a condição de sócia. Os ministros, em
decisão unânime, negaram provimento ao recurso especial da empresa.
Confusão patrimonial
Em maio deste ano, a Terceira Turma analisou recurso especial de uma
empresa que questionava a desconsideração inversa de sua personalidade
jurídica que fora deferida para a satisfação de crédito de
responsabilidade do seu controlador.
A partir do exame dos elementos de prova do processo, o juízo de
primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo concluíram pela
ocorrência de confusão patrimonial entre duas empresas que estariam
vinculadas a um mesmo controlador de fato.
Há informações no processo de que o controlador teria se retirado de
uma das sociedades, transferindo suas cotas sociais para suas filhas.
Contudo, permanecera na condução da referida empresa, visto que, no
mesmo ato, as novas sócias o nomearam seu procurador para
“representá-las em todos os assuntos relativos à sociedade.
Em seu voto, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, defendeu que a
condição “oficial” do agente responsável pelo abuso fraudulento da
personalidade jurídica não influencia, de forma alguma, a aferição da
necessidade da desconsideração inversa (REsp 1.493.071).
Ele ressaltou que a medida deve ser adotada apenas em hipóteses
extremas, quando o intuito for resguardar os interesses dos credores das
tentativas de esvaziamento do acervo patrimonial do devedor por
simulação.
Razão de ser
Para a ministra Nancy Andrighi, assim como na desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita, a aplicação de sua forma
inversa tem a mesma razão de ser: combater a utilização indevida do ente
societário por seus sócios.
Ela observou que, independentemente da interpretação teleológica do
artigo 50 do CC, a aplicação da teoria em sua modalidade inversa
encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à
própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude
contra credores.
Em julgamento de recurso especial, a ministra fez uma reflexão sobre
a necessidade de cautela por parte do juiz para aplicação da teoria,
sobretudo no sentido inverso (REsp 948.117).
Fim social
Segundo ela, a distinção entre a responsabilidade da sociedade e a
de seus integrantes serve para estimular a criação de novas empresas e
para preservar a própria pessoa jurídica e o seu fim social. Contudo, se
a empresa fosse responsabilizada sem critério por dívidas de qualquer
sócio, “seria fadada ao insucesso”.
Com base nesse argumento, ela sustentou que somente em situações
excepcionais, em que o sócio controlador se vale da pessoa jurídica para
ocultar bens pessoais em prejuízo de terceiros, é que se deve admitir a
desconsideração inversa.
Em outras palavras, o juiz só está autorizado a “levantar o véu” da
personalidade jurídica quando forem atendidos os pressupostos
específicos relacionados com a fraude ou o abuso de direito
estabelecidos no artigo 50 do CC.
REsp 1493071 AREsp 792920 REsp 1236916 REsp 1493071 REsp 948117
Fonte: Superior Tribunal de Justiça