Diante
do atual cenário de grave crise política e econômica instaladas no país, os
governos estaduais têm sofrido com a constante queda de arrecadação do ICMS.
Nesse cenário, o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) tem buscado
estabelecer novos horizontes de tributação ainda não explorados ou alcançados
pelas Secretarias de Fazenda Públicas Estaduais.
Com a edição do Convênio
ICMS nº 106/2017, publicado nesta quinta-feira (5) no Diário Oficial, o setor
de tecnologia enfrentará nos próximos anos grandes desafios e disputas fiscais,
em todo o território nacional. Referido convênio autoriza os Estados e DF a
legislarem sobre a incidência do ICMS nas operações com softwares. A edição da
referida norma confirma a movimentação do CONFAZ nos últimos anos para
estabelecer o setor de tecnologia no Brasil como o grande alvo das Fazendas
Públicas Estaduais.
Nesse sentido, o Convênio
ICMS nº 106/2017 possibilita, a partir de 1º de abril de 2018, a tributação das
operações com softwares,
programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres,
que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados,
comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming).
As principais determinações
estabelecidas pela norma são:
I. As empresas que
comercializarem o software via download ou streaming deverão ter
inscrição estadual em cada Estado para onde vender o produto, a não ser que
seja dispensada da obrigação (Cláusula Quarta);
II. Arrecadação do ICMS
será destinada ao Estado no qual estiver localizado o consumidor final
(Cláusula Terceira);
III. Isenção do ICMS para
as operações anteriores à venda a este mesmo consumidor final (Cláusula
Segunda);
IV. O recolhimento do
tributo será mediante Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais –
GNRE ou documento estadual previsto na legislação da respectiva unidade (§ 2º
da Cláusula Quarta); e
V. Os Estados poderão
eleger terceiros como responsáveis pelo recolhimento do ICMS, (ex.: consumidor
do software, administradoras
cartão de débito e crédito ou outro intermediador financeiro), sendo tal
situação também aplicável para operações internacionais (Cláusula Quinta).
Diante das disposições
mencionadas acima, nota-se que o Convênio nº 106/2017 estabelece as seguintes
hipóteses para o ICMS sobre softwares: (i) na
hipótese de saídas internas, a pessoa jurídica detentora do sítio eletrônico ou
plataforma virtual deverá se inscrever em todas os estados nos quais realize
operações de saída dos bens e emitir a respectiva nota fiscal; e (ii) nas operações realizadas
fora do país, será eleito um responsável pelo recolhimento do imposto.
Com efeito, não é a
primeira vez que o CONFAZ trata sobre a incidência do ICMS sobre softwares. Em
2015, foi editado o Convênio ICMS nº 181, por meio do qual o CONFAZ autorizou
diversas Unidades da Federação[1] a conceder redução de base de cálculo do ICMS
que corresponda ao percentual de no mínimo 5% (cinco por cento) do valor da
operação que envolva softwares e congêneres, disponibilizados por qualquer
meio, inclusive nas operações efetuadas por meio de transferência eletrônica de
dados (download ou streaming)[2].
Em termos práticos, a
partir do Convênio nº 181/2015, já era possível aos Estados e DF estabelecer a
cobrança do ICMS sobre o valor total das operações com softwares,
diferentemente do que vinha ocorrendo anteriormente na maior parte dos Estados,
que apenas exigiam o ICMS sobre o valor das mídias físicas, não dos programas
em si.
O Estado de São Paulo já
havia se antecipado em relação ao CONFAZ com a edição do Decreto n. 61.522 em
29 de setembro de 2015, o qual afastou a incidência do ICMS apenas sobre o
(dobro do) valor da mídia e passou a prever, a partir de 01/01/2016, o
recolhimento do ICMS nas operações de vendas de softwares sobre o valor total
da operação[3].
Contudo, após diversos
questionamentos pelos contribuintes a respeito da referida norma, em 11 de
janeiro de 2016, foi publicado o Decreto Estadual (SP) n. 61.791/2016, no
qual (i)foi suspensa a
cobrança de ICMS nas operações com softwares e congêneres, até que fosse
definido o local de ocorrência do fato gerador do ICMS; e (ii) se incorporou à
legislação paulista[4] a redução de base de cálculo prevista no
Convênio ICMS n. 181/15, de modo a resultar em carga tributária equivalente a
5% do ICMS incidente na operação[5].
Com efeito, é evidente que
o Estado de São Paulo esperava somente a publicação do Convênio ICMS nº
106/2017 para retomar a cobrança do ICMS sobre softwares via download e streaming. Porém, mesmo com a definição quanto ao
local de ocorrência do fato gerador do tributo, as normas estaduais e do CONFAZ
mencionadas acima possuem vícios de ordem legal e constitucional.
Primeiramente, há de se
ressaltar a existência de vício formal constitucional das referidas normas,
haja vista que somente Lei Complementar específica pode (i) solucionar o conflito de
competência entre Estados e Municípios para cobrança do tributo; e (ii) definir a base de cálculo,
o fato gerador e contribuintes responsáveis pelo recolhimento do tributo; nos
termos do art. 146 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[6].
Logo, jamais poderia o
Convênio ICMS nº 106/2017 definir os contribuintes, responsáveis e o local de
arrecadação do ICMS, como fez expressamente em suas Cláusulas Terceira, Quarta
e Quinta.
Em segundo lugar, há de se
ressaltar que não há previsão constitucional de incidência do ICMS sobre as
operações de softwares via download e/ou streaming no Art. 155, inciso II da
Constituição Federal de 1988 (CF/88)[7].
Isto porque o núcleo
material constitucional do ICMS não se relaciona com tais operações, sendo
evidente que (i) nem o
“download”, nem o “streaming” caracterizam, em termos fiscais, uma circulação
efetiva de mercadorias (transferência de propriedade), apta a ensejar a
incidência do tributo; e (ii) o
software em si é um bem imaterial e intangível, não sendo possível
identificá-lo, de forma objetiva, com uma mercadoria concreta.
Como bem leciona Roque
Antônio Carrazza[8], os “softwares”
por serem bens incorpóreos e fruto de trabalho intelectual, claramente,
tipificam “modalidade de direito intelectual”[9]. Tais modalidades de direito intelectual possuem “a
proteção jurídica dispensada aos direitos autorais”[10], sendo objeto de contratos de licença de uso, nos
termos dos arts. 2º e 9º da Lei n. 9.609/1998 e arts. 7º e 28, inciso XII da
Lei n. 9.610/98.
Por sua vez, os contratos
de licença de uso, aplicáveis à grande maioria das operações de “softwares”, possibilitam ao
usuário (licenciado) o direito de uso do produto criado pelo licenciador, sem,
no entanto, ocorrer a transferência da propriedade intelectual dos direitos
imateriais. Tal transferência de propriedade/titularidade do bem digital é
necessária para caracterização do núcleo material do ICMS. Esse é o
posicionamento é da doutrina especializada sobre o assunto[11].
Além disso, de acordo com
os itens “1.04”, “1.05” e “1.09” da lista anexa à Lei Complementar n. 116/2003[12], as operações com softwares estão sujeitas ao
Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN. De acordo com o art. 2º,
inciso V da LC 87/96[13], tais operações somente poderão sofrer a
incidência do ICMS quando houver previsão expressa na lei complementar (LC
116/2003), o que não se verifica em relação aos itens “1.04”, “1.05” e “1.09”.
Logo, caso seja autorizada
a tributação do ICMS sobre as operações com softwares quando já há a tributação
do ISSQN pelos itens “1.04”, “1.05” e “1.09” da lista anexa à LC n. 116/2003,
haverá notória bitributação, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico.
O entendimento aqui
defendido é confirmado pela jurisprudência pátria mais recente[14], existindo apenas um precedente divergente
analisado pelo STF em julgamento realizado quando da análise da medida cautelar
na ADI n. 1945/MT, proposta em face de dispositivos normativos da Lei Estadual
(MT) n. 7.098/98 do Mato Grosso. Tais dispositivos previam a incidência do ICMS
na aquisição de softwares mediante transferência eletrônica de dados. Quanto a
esses dispositivos específicos, vale ressaltar que a medida cautelar pleiteada
pelo contribuinte foi indeferida, por decisão apertada[15], tendo em vista (i) a necessidade da própria Suprema Corte
refletir com maior profundidade acerca do tema; e (ii) em razão, da referida
norma estar vigente há mais de 12 (doze) anos. O processo aguarda ser incluído
em pauta para julgamento definitivo do mérito da questão pelo Plenário do STF[16].
Mesmo que o tema esteja
pendente de julgamento definitivo pelo STF, é possível verificar, em razão de
todos os argumentos apresentados, que a Cláusula 1ª do Convênio ICMS n.
181/2015 é nitidamente inválida por afrontar os arts. 146 e 155, II da CF/88,
eis que busca incluir indevidamente as operações com “softwares” no âmbito da
incidência constitucional do ICMS.
Por fim, em relação a
situação específica de transferência de dados de músicas e filmes, existem
questionamentos acerca da extensão do disposto no artigo 150, inciso VI, alínea
“e” da Constituição. Isto porque a Emenda Constitucional (EC) nº 75, de 2013,
previu a imunidade de impostos sobre operações com “fonogramas e
videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou
literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por
artistas brasileiros”. A imunidade mencionada se estende claramente aos bens
digitais que contenham tais conteúdos, não sendo possível a incidência do ICMS.
Portanto, com todo o
respeito ao “mumus” conferido ao CONFAZ, por mais louvável que seja a
finalidade de instituir uma determinada tributação, não se pode permitir a
edição de normas ao arrepio do que restou estabelecido pela Constituição
Federal de 1988, sob pena de se estar ferindo o Estado Democrático de
Direito, bem como o princípio da segurança jurídica que se relaciona, em
sua essência, ao princípio da confiança legítima entre Estado
e contribuintes.
Diante de tal situação, uma
solução alternativa para possibilitar a incidência de ICMS sobre as operações
com “software” via “download” e “streaming”, de modo a combater a queda de
arrecadação fiscal enfrentada atualmente pelos Estados e Distrito Federal,
seria a edição de uma Emenda Constitucional pelo Congresso Nacional que
permitisse expressamente tal incidência. Inclusive, tal situação já ocorreu
anteriormente de modo semelhante em relação ao “ICMS-Importação”, introduzido
pela Emenda Constitucional n. 33, de 11 de dezembro de 2001, a qual acrescentou
a alínea “a” ao inciso IX, do §2o do art. 155 da
Constituição Federal.
Contudo, até que seja
editada a referida Emenda Constitucional, espera-se que tais balizas sejam
observadas pelas autoridades administrativas no exercício pleno de suas
funções, de modo que nosso país possa superar desafios sem o
atropelo do texto constitucional.
Fonte: JOTA